Revisitar a LBSE à Procura da Inclusão
Há dias felizes. Como aquele em que me fizeram o desafio para falar de educação especial com base na Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE). Primeiro estranhei mas lá fui eu revisitar a tal lei. A tal que é, por princípio, base do nosso sistema educativo. Depois lá me embrenhei, o que teve como resultado sentir-me, agora sim, estranho.
Tenha como adquirido que todos os discursos, normativos e afins que celebram a inclusão têm a razão dos tempos. Mas verdade, bem verdade que também tinha como adquirido que essa era a realidade de todos os pilares do nosso sistema, nomeadamente a sua principal Lei, a base do sistema educativo português. Desenganei-me. Foi o desengano de quem olha para a carroçaria pressupostamente nova de um carro, mais todas as suas inovações tecnológicas e nunca se tinha lembrado de espreitar o motor. Sim um motor 30 anos mais velho que tudo o resto. Como imaginam, melhor que eu pois não percebo nada de carros, ou o motor se muda ou não se muda e não aguenta. Lá temos nós nas estradas a carroçaria de um Ferrari (não sei se há melhor) a andar à velocidade de um bimotor. Pois é, estas coisas têm que se relacionar muito bem. Como diria o senso comum, chapéu novo em pensamento velho, fica bem mas não altera o pensamento. Mas vamos aos factos.
O primeiro facto: a actual Lei de Bases do Sistema Educativo português reflecte, tanto nos seus pressupostos pedagógicos como organizacionais, todo um racional que nos remete para referenciais subjacentes a um modelo de integração e não de inclusão, não só no que se refere ao seu todo como na forma como são substantivados os artigos relativos à denominada educação especial (“a educação especial organiza-se preferencialmente segundo modelos diversificados de integração” - artigo 21.º ponto 1).
Estamos propositadamente a centrar-nos numa parte da realidade, a denominada educação especial, mas se tiverem vontade leiam toda a LBSE. Mas abordem-na segundo os pressupostos de uma educação para o século XXI. Enquadrem a leitura com os aspectos, que se defendem actualmente, relativos à aprendizagem e participação de populações mais fragilizadas como são os alunos com deficiência. Chamem à liça normativos e discursos mais actuais e depois, bem depois digam-me se não se sentem desenganados/as.
Coloquem todo o ideário da nossa LBSE num eixo de reflexão sobre aprendizagem e ensino de todos os alunos no sistema regular de ensino, numa lógica da diversidade que caracteriza todas as populações escolares e tem influenciado mudanças na maioria dos países da Europa e não só. E repito, digam-me se têm a coragem de ignorar essa tal sensação de (des)engano.
Mas voltemos ao microcosmos da educação dita especial, aquela que na LBSE português consubstancia, conjuntamente com outras áreas de ação educativa, o que podemos denominar por subsistemas ou sistemas paralelos no que se constitui legalmente como o sistema educativo (“modalidades especiais de educação” - artigo 19º).
Para os/as que não quiserem ir ler, acreditem que tanto no que se refere ao seu âmbito como aos seus pressupostos organizacionais identifica-se na actual LBSE português toda uma linguagem que é apanágio de modelos conceptuais clínicos e em alguns pontos com laivos de modelos assistencialistas e segregadores (“redução das limitações provocadas pela deficiência”).
Bem talvez não seja caso para tanto alarido. Talvez isto seja coisa de pessoa voluntariosa. Mas o facto existe. Refiro-me a todo um racional, teórico, cultural e político que influenciou práticas pedagógicas e organizacionais vigentes na época. Perspectivas que (in)formaram documentos internacionais que necessariamente influenciaram não só a conceptualização da nossa LBSE como, mais ou menos directamente, grande parte dos documentos orientadores e normativos produzidos até aos dias de hoje.
Quanto às influências esperarão alguns que dê como exemplo a Declaração de Salamanca, pois não. Esse documento também poderia ser exemplo mas é mais recente e não ilustra tão bem a ideia com que fiquei.
Por isso escolho como exemplo a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes de 1975, aprovada pela assembleia das Nações Unidas. Nela se designa pessoa deficiente como “qualquer pessoa incapaz de satisfazer por si própria, no todo ou em parte, as necessidades de uma vida normal individual e/ou social, em resultado de deficiência, congénita ou não, nas suas faculdades físicas ou mentais” (ponto 1).
Esta citação tão só ilustra discursos conceptuais, normativos e argumentativos que percepcionam a deficiência como problema da própria pessoa, no caso da educação, do aluno. A deficência encarada como algo que se confunde com ele próprio. A deficiência como que se transforma na própria identidade do aluno.
Pese os discursos sobre inclusão estas perspectivas têm estado, na prática, subjacentes à contínua conceptualização e organização de respostas educativas para os alunos denominados, no sistema educativo português, como tendo necessidades educativas especiais.
O bom da questão! Estas respostas têm vindo a ser colocadas em causa não só por professores como por pais e diversos organismos internacionais. Como exemplo dessas críticas destacamos o último relatório, com avaliações muito negativas, produzido pela Organização da Nações Unidas relativamente ao cumprimento por parte de Portugal do artigo 24.º constante da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o respectivo Protocolo Opcional, adoptada a 13 de Dezembro de 2006, em Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Ah! Esta versão da convenção já não é de 1975 mas de 2006.
E querem lá saber que Portugal aprovou a anterior convenção (coisas da tal carroçaria moderna) por via das Resoluções da Assembleia da Republica nº 56/2009 e nº 57/2009 que foram ratificados pelos Decretos do Presidente da República nº 71/2009 e nº 72/2009.
Pois, voltando à metáfora da carroçaria está tudo bem. A Convenção na sua Resolução de 13 de Dezembro de 2016 reconhece no preâmbulo “que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interacção entre pessoas com incapacidades e barreiras comportamentais e ambientais que impedem a sua participação plena e efetiva na sociedade em condições de igualdade” (alínea e).
Com o olhar na realidade actual, muito longe da realidade da nossa LBSE, as perspectivas apontam para abordagens subjacentes aos denominados modelos social e de direitos humanos.
Modelos de onde emergem conceptualizações que têm vindo a introduzir em grande parte dos sistemas educativos novas perspectivas, respostas e conceitos. Relativamente aos conceitos destacamos, só como exemplo, os de: qualidade na educação, acessibilidade, equidade nas aprendizagens, autodeterminação, participação, etc.
Chegados aqui, parece-nos importante apresentar alguns recortes de exemplos concretos de como estas perspectivas têm originado mudanças em diversos sistemas educativos. Em alguns casos influenciado mesmo o racional das mudanças em Leis Base de Sistemas Educativos de diversos países. Sublinhamos que nestes movimentos mundiais as respostas aos alunos comumente referidos com necessidades educativas especiais são na maioria dos casos integradas no sistema regular de ensino. Isto tanto no que se refere a respostas organizacionais como pedagógicas, equacionando-se níveis de flexibilidade e autonomia bem como sistemas integrados de monitorização e verificação.
Porque não alguns exemplos. Recortes sobre os quais de forma consciente e propositada não referimos os países a que reportam. Tão só por causa do preconceito.
O sistema educativo deve fornecer a todos os alunos: 1) Igualdade e acessibilidade à educação sem discriminação e segregação com base no género, antecedentes sociais, culturais, étnicos, religiosos ou outros como: lugar de residência ou domicílio, financeiros, estado de saúde, dificuldade no desenvolvimento e deficiência. 2) A qualidade da educação deve basear-se nas evidências das ciências modernas e estar adaptada à idade dos alunos e às suas necessidades pessoais e educativas. 3) A educação numa instituição democrática e socialmente responsável promovendo a abertura, a cooperação, a tolerância, a consciência da inter-relação cultural e civilizacional do mundo, o compromisso com valores éticos e básicos de justiça, verdade, solidariedade, liberdade, honestidade e responsabilidade, uma instituição que garanta o pleno respeito dos direitos dos alunos. 4) A educação deve ser orientada com base em diferentes formas de ensino e aprendizagem de modo a responder a diferentes necessidades dos alunos, promover a motivação para a aprendizagem e aumentar a qualidade de realização e desempenho. 5) A igualdade de oportunidades está presente em todos os níveis e tipos de educação e ensino, em consonância com as necessidades e interesses dos alunos, sem obstáculos à mudança, continuação e conclusão da educação ao longo da vida. |
eficiência, eficácia e flexibilidade da organização do sistema de modo obter os melhores desempenhos de saída possíveis.
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abertura a inovações pedagógicas e organizacionais |
para os alunos com problemas no desenvolvimento ou alunos com deficiência tem-se em consideração as suas necessidades educativas, dentro do sistema regular de ensino, através de respostas adicionais individuais e/ou de grupo. |
Em conformidade com os valores da constituição a Lei de Bases do sistema Educativo, no respeito dos direitos e liberdades é inspirada pelos seguintes princípios: a) Qualidade na educação para todos os alunos, independentemente da sua condição e circunstâncias b) Garantia da igualdade de oportunidades para o desenvolvimento completo e pessoal através da educação, inclusão, direitos e igualdade de oportunidades, que ajude a superar qualquer tipo de discriminação e o acesso universal à educação que age como um factor compensador das desigualdades pessoais, culturais, económicas e sociais, com especial enfase no que respeita à deficiência. |
Muitos outros recortes/exemplos poderíamos partilhar e com eles estabelecer relação directa com aspectos como: organização de respostas, sistemas de monitorização e verificação, autonomia e descentralização, colaboração entre serviços e necessariamente ministérios, currículo nomeadamente aspectos de avaliação, etc.
Mas estas palavras vão longas.
Como sublinhado só mais umas coisinhas (sufixo bem à portuguesa), assim como que pormenores que têm mudado em Leis de Base de outras latitudes:
- A expressão necessidades educativas especiais não é contemplada embora sejam salvaguardados aspectos de financiamento de algumas respostas específicas no que a alguns alunos diz respeito nomeadamente aos alunos com deficiência.
- A expressão educação especial é muitas vezes abolida adotando-se termos como alunos que necessitam de respostas/apoios especiais/específicos, ou seja a ênfase é dada ao tipo de respostas necessárias e não ao "tipo" de aluno que as necessita.
- É sublinhado o imperativo das respostas serem equacionadas no currículo comum salvaguardando-se aspectos de acomodações curriculares subjacentes aos princípios de diferenciação pedagógica e flexibilidade curricular. Em alguns países estas questões são equacionadas em articulados próprios mantendo-se em alguns casos a denominação de Plano Educativo Individual ou Programa Educativo Individual ou ainda, resposta/apoio individualizado.
Como despedida, agora de vez por esta vez, alguns alertas que uns organismos nos vão deixando (à laia de sugestão ver de verdade os escritos de Agência Europeia para as Necessidades Especiais e Educação Inclusiva, organismo no qual Portugal é representado, nada mais nada menos, pelo Ministério da Educação).
- É necessário ter-se em conta a mudança e clarificação de muitos conceitos subjacentes às atuais reflexões sobre o paradigma inclusivo
- Que Inclusão sem participação não é inclusão.
- É necessário promover currículos baseados nos princípios do Desenho Universal para a Aprendizagem mesmo sabendo-se que alguns alunos continuarão a necessitar de acomodações curriculares em diversas dimensões do currículo.
- As respostas devem ser articuladas e baseadas numa descrição clara e prática do conceito de equidade nas aprendizagens.
- Que independentemente dos níveis de especialização dos diversos agentes educativos, logo no início dos ciclos de formação é imprescindível a preparação, com ênfase em perspetivas atuais, de todos os agentes educativos e essencialmente professores.
- Que existem ganhos:
- ao nível educativo uma vez que as escolas têm que se organizar administrativamente e pedagogicamente para desenvolverem sistemas que permitam diversas formas de ensinar e diversas formas de aprender beneficiando assim todos os alunos.
- ao nível social porque existe uma efetiva mudança de atitudes em relação à diversidade que informam um saber e um saber ser que é a base de uma sociedade mais justa e não discriminatória.
- Ao nível financeiro porque fica mais barato estabelecer e manter escolas que educam e ensinam todos os alunos, do que criar sistemas complexos de respostas segregadas dentro da escola e/ou de diferentes organizações escolares especializadas em educar e ensinar crianças e ou grupos de crianças diferentes.
2016-11-08
Joaquim Colôa